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Cartas de Berlim

Este é um espaço de reflexão dedicado à Alemanha com enfoque na vida política

Cartas de Berlim

Este é um espaço de reflexão dedicado à Alemanha com enfoque na vida política

Auschwitz:da amnésia à memória

Helena Ferro de Gouveia, 26.01.25

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Como respeitar o carácter único de um acontecimento inscrevendo-o na história, contextualizando-o, sem o trivializar, sem o instrumentalizar e respeitando o imperativo categórico da memória?

Oitenta anos após Auschwitz, o “Lager” que se tornou no símbolo do genocídio “industrial” dos judeus, a Alemanha fez um longo, intenso, doloroso e exemplar percurso de confronto com passado. Este exercício foi-se intensificando à medida que os 12 anos do III Reich se foram distanciando e acentuou-se com a reunificação do país. O primeiro confronto dos alemães com o passado recente foi involuntário: enquadrava-se no programa de “Umerziehung” (reeducação) dos Aliados, através de “visitas” aos campos de concentração, da exibição cinematográfica dos crematórios e das pilhas de cadáveres, da desnazificação e do Julgamento de Nuremberga.

Em “Política e Culpa”, a politóloga Gesine Schwan explica o preço político e psicológico daquilo que designa por “Beschweigen” – manter deliberadamente o silêncio sobre os crimes e a barbárie nazi – na escola, na vida pública e sobretudo nas famílias durante os anos 50. Discutivelmente, o filósofo Hermann Lübbe argumenta que terá sido o facto da Alemanha de Konrad Adenauer, durante os anos 1950, ter suprimido a memória do nacional-socialismo, conjugando amnistia e amnésia, que permitiu a consolidação social da democracia na República Federal da Alemanha. Em resumo: a culpa da Shoah devese a alguns, poucos, “Täter”, um mito de inocência individual na Alemanha Ocidental e colectiva na RDA.

Os próprios  intelectuais ficaram perplexos perante a lâmina acutilante da poesia de Paul Celan, “a morte é um mestre que veio da Alemanha” (“Fuga da Morte” 1952). À amnésia segue-se a entrada em força na Academia e nas páginas dos jornais de dois termos: “Geschichtssaufarbeitung” (tratar o passado) e “Vergangenheitsbewältigung” (ultrapassar o passado).

Com a publicação do “ Diário de Anne Frank” e a primeira análise documental do Genocídio como processo industrial – “Noite e Nevoeiro” de Alain Resnais, 1955 – os alemães começaram a descobrir a empatia com as vítimas. A década de 60 abre com dois julgamentos o de Adolf Eichmann, “o” organizador do Holocausto, em Alemanha

A partir do “processo de Auschwitz”, nos anos 1960, e com a geração de 1968 foram obrigados a um doloroso e intenso trabalho de confronto com o passado 1961, em Israel, e o “processo de Auschwitz”, em Frankfurt. Foi com este último processo, entre Dezembro 1963 e Agosto de 1965, onde depuseram 211 sobreviventes, que a opinião pública alemã sofreu um violento choque.

Auschwitz, realidade incompreensível, materializou-se nas consciências, tornando-se no sinónimo do mal absoluto. Fritz Bauer, o procurador público que esteve na origem do processo, afirmava que ele deu à Alemanha uma oportunidade de usar o sistema legal como forma de auto-reflexão e de aprendizagem sobre “os perigos da nossa história”. Com a geração de 68, a culpa salta para as ruas, desafiando o clima público de amnésia colectiva. Os debates sobre as origens do Genocídio foram tornando-se mais sofisticados à medida que paradigmas mais amplos de interpretação se aplicaram para explicar a marcha do anti-semitismo hitleriano até ao mecanismo organizado de morte em massa.

Nos anos 1980, a competição de memórias talvez seja a característica que melhor descreve o confronto dos alemães com o passado. “Muitos alemães ainda não estabeleciam conexões entre o seu sofrimento pessoal e aquilo que Hitler perpetrou”, escreve a historiadora Mary Fulbrook. A série televisiva “Holocausto” e o filme “Shoah”, de Claude Lanzmann, foram bússolas no longo percurso da Alemanha para se tornar uma nação “normal”.

Só em 2002 se reuniram condições para realizar uma exposição de grande fôlego sobre a “indústria de aniquilamento” nazi em que o “Leitmotiv” era o destino das vítimas e não a acção dos perpetradores. A mostra “Holocausto, o genocídio nacional-socialista e os motivos da sua memória” evitou recorrer ao efeito de choque e comoção – o murro no estômago experimentado por quem visita um campo de concentração ou o Museu do Holocausto em Washington – apostando numa organização “clean”, cronológica e tão racional quanto o tema o permite. “O enquadramento do Holocausto no seu contexto histórico-político é muito importante, em particular na Alemanha, onde uma identificação moral com as vítimas exige a ultrapassagem de enormes barreiras psicológicas”, explica o historiador Hans Mommsen.

Em 1999, o Bundestag aprovou o monumento em memória dos judeus europeus exterminados. Em pleno coração de Berlim, a obra do arquitecto Peter Eiseman, que seria  inaugurada a 10 de Maio, possibilita aos visitantes moverem-se aleatoriamente, perdendo todas as certezas.

Hoje, o trabalho de memória não é feito com um dedo acusador, mas sob a vigilância perene do artigo primeiro da Lei Fundamental alemã: “A dignidade humana  é intocável”.

(texto adaptado do que escrevi para o Público a 27.01.2005 )

O arquivo de Ringelblum

Helena Ferro de Gouveia, 26.01.25

 

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3 Agosto de 1942, Rua Nowolipki 68, Varsóvia. Dez caixas de metal são enterradas na cave de uma escola. É um espólio extraordinário. Um mundo dentro do mundo, um tempo dentro do tempo.

A UNESCO não tem dúvidas, trata-se de um dos mais importantes arquivos do mundo. Testemunhos clandestinos da vida no gueto de Varsóvia. Gritos que soletram todas as sensações do desespero.

São milhares de documentos catalogados com rigor. Textos literários, documentos pessoais, manuscritos, estudos sociológicos, jornais, documentos oficiais alemães, em yiddisch, alemão e polaco, reunidos por uma sociedade secreta, a “Oyneg Shabes”, em torno do historiador Emanuel Ringelblum. Em hebreu moderno “Oyneg Shabes” significa a alegria de Sábado (porque os membros se reuniam com frequência nesse dia). Os seus cerca de cinquenta associados eram rabis e artesãos, comunistas e economistas, sionistas e assimilados. Verdadeiro caleidoscópio judaico onde não havia tempo para querelas ideológicas. Quando se ouvem ao perto os passos da morte que caminha ao nosso encontro, reunir factos, provas da aniquilação para que alguém conte a história, ajuda a amaciar o sofrimento.

O arquivo de Ringelblum é uma narrativa colectiva nos limites da vida e da humilhação. Uma vida num cadinho de fome, desespero e doença, intersectada com muitas histórias de heroísmo silencioso e de auto-sacrifício.

Alguns dos materiais recolhidos são uma reserva ilimitada de cinismo e torpeza, de mutilação moral. Dois exemplos. Um dos documentos (alemão) especificava a quantidade diária de calorias a ser distribuída em Varsóvia em 1941, aos alemães cabiam 2613 calorias, aos polacos 633 e aos judeus 184. Outro, um poster de 1942, prometia três quilos de pão e um quilo de marmelada a quem voluntariamente se oferecesse para ser deportado.

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No seu diário, publicado em inglês em 1958 – e que serviu de inspiração para novela de John Hersey ,“The Wall” – Ringelblum anotou “o mais terrível é ver as crianças a tremer de frio. Esta noite ouvi uma criança de três ou quatro anos a gemer. Amanhã devemos encontrar o corpo”.

Quando começaram a chegar ao gueto de Varsóvia as notícias das deportações e dos assassínios e massa, Ringelblum decidiu esconder o arquivo. Um dos seus maiores medos era que ninguém sobrasse para o desenterrar. Da meia centena de pessoas que faziam parte da “Oyneg Shabes”, apenas três sobreviveram ao Holocausto. Seria um desses sobreviventes, Hersz Wasser – que fugiu de um comboio a caminho do campo de extermínio Treblinka – que depois da guerra conduziria as escavações para o recuperar.

O historiador Emanuel Ringelblum, seria fuzilado, com a sua família, em 1944. Mas, o legado que nos deixou, hoje na posse do Instituto Histórico Judaico de Varsóvia, entranha-se. Ficamos-nos debaixo da pele para que nunca se apague. O gueto de Varsóvia não foi um acidente. Auschwitz não foi um acidente. Nasceu da nossa cultura – europeia e não apenas alemã – e pode regressar. Auschwitz foi construído em nome da “civilização” e contra uma suposta barbárie. Dostoievsky escreveu que se Deus morre tudo passa a ser permitido.

O plano de cinco pontos de Merz para travar a imigração

Helena Ferro de Gouveia, 24.01.25

O líder da União Democrata-Cristã (CDU) alemã, Friedrich Merz, prometeu reprimir a imigração ilegal se se tornar chanceler após as eleições para o Bundestag, no próximo mês.

Na quinta-feira (23.01), Merz, o favorito de acordo com as sondagens, disse que iria proibir a entrada na Alemanha de pessoas sem documentos adequados e prometeu aumentar as deportações.

Plano de 5 pontos de Friedrich Merz

1. Fronteiras "fechadas" por directiva  no dia 1 (após formação de Governo)

2. A polícia federal,Bundespolizei, deve ser autorizada a requerer mandados de captura

3. Os deportados são colocados em custódia enquanto aguardam a deportação

4. A Bundespolizei deve ser autorizada a efetuar deportações (anteriormente era da competência dos estados federais)

5. Os delinquentes e as pessoas perigosas devem ser detidos por tempo indeterminado enquanto aguardam a deportação.

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Os seus comentários foram feitos um dia depois de duas pessoas, incluindo uma criança de dois anos, terem sido mortas e três outras feridas num esfaqueamento na cidade bávara de Aschaffenburg.

O suspeito, que foi detido, é um antigo requerente de asilo. Era conhecido das autoridades locais e já tinha sido internado num hospital psiquiátrico, tendo alegadamente afirmado há mais de um mês que iria abandonar o país voluntariamente.

O lider da CDU afirmou que o ataque “causou grande consternação em todo o país” e relacionou-o com outros incidentes ao apresentar a sua nova posição - distanciando-se implicitamente do historial de governo da antiga chanceler Angela Merkel.

“Recuso-me a reconhecer que os actos de Mannheim, Solingen, Magdeburgo e agora Aschaffenburg sejam supostamente o novo normal na Alemanha”, disse. “Estamos perante a confusão de uma política de asilo e de imigração que foi mal conduzida na Alemanha durante 10 anos.” A sugestão de Merz, de endurecer a entrada no país, recebeu o apoio do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), atualmente em segundo lugar nas sondagens, atrás da CDU.

Numa publicação nas redes sociais, a copresidente do AfD e candidata a chanceler, Alice Weidel, apelou ao “encerramento das fronteiras e à deportação dos [imigrantes] ilegais” e exigiu “o fim das mortes por firewall”. Com isto, referia-se à recusa convencional dos outros partidos alemães em estabelecer coligações com a AfD, conhecida como Brandmauer, ou firewall.

Friwdrich Merz descartou a possibilidade de formar um governo com o AfD, um passo que os liberais do FDP esperam que os traga de volta ao governo. Tradicionalmente, o FDP tem sido um parceiro natural de coligação para a CDU e o seu partido irmão bávaro, a União Social-Cristã. As reivindicações do FDP estiveram no centro da rutura do governo de coligação tripartido em novembro, o que levou às eleições antecipadas de fevereiro.

“Merz está a pedir uma mudança radical, é claro”, escreveu o líder do FDP, Christian Lindner no X. “Mas não o conseguirá fazer com o SPD ou com os Verdes”.

Do outro lado do espetro político, Sahra Wagenknecht, da BSW, de extrema-esquerda, cética em relação à migração e populista, também apelou a uma “verdadeira reviravolta na política de refugiados”. Segundo a Welt TV, as autoridades “perderam o controlo” sobre as pessoas que viajam para a Alemanha.  

Entre janeiro e novembro de 2024, foram deportadas 18 384 pessoas da Alemanha, em comparação com 16 430 deportações em 2023

 

"Quero sentir-me de novo segura"

Helena Ferro de Gouveia, 24.01.25

Este post é a tradução de uma carta aberta de Franka Bauernfeind, escritora e militante democrata-cristã de 27 anos, publicada no semanário Focus. Nela se encontram espelhadas muitas das inquietações alemãs e que serão decisivas a 23 de Fevereiro.

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"O ano de 2025 começou de forma tão horrível como terminou o anterior: com crimes terríveis que não têm paralelo e que, no entanto, estão a tornar-se cada vez mais frequentes. Aqui na Alemanha.

Poderia ter escrito este texto por ocasião de um dos muitos outros assassínios ou ataques de requerentes de asilo a pessoas completamente inocentes e desconhecidas. Mas houve sempre muitos e bons artigos de opinião que se exprimiram mais rapidamente e reflectiram bem o meu pensamento.

Eu cresci e cresci em paz

Mas agora isto afecta-me pessoalmente em termos puramente geográficos e já não consigo conter a minha frustração. Estou a ser arrastada cada vez mais para uma espiral de escalada - tanto emocional como factual - que não fazia ideia que estava a acontecer até há dez anos atrás.

Eu cresci e cresci em paz - pelo menos é assim que me sinto. Se à noite ligávamos o telejornal com os nossos pais e nos diziam quais eram as notícias mais importantes do dia, a maior parte das vezes, e sobretudo na perspetiva atual, eram coisas triviais. De qualquer modo, não eram temas que me afectassem pessoalmente em grande medida ou que afectassem o meu tecido social.

O que talvez tenha tido um impacto duradouro em mim nessa altura foi a crise financeira por volta de 2010. Percebi desde cedo que a incerteza existe e que pode ser desconfortável. No entanto, nunca teria aplicado esta perceção à insegurança física ou de risco de vida - não na Alemanha!

Um sono político

Mas desde que “cresci”, pelo menos no papel, quando atingi a maioridade, os temas das notícias mudaram súbita e abruptamente. Tornaram-se palpáveis e mais próximos, deixaram de ser tão abstractos como o  derrube de governos e as guerras civis em países para onde nunca tínhamos viajado. Os serões caracterizavam-se agora por fugas e migrações em massa para a Alemanha. Os tabus no discurso social foram a primeira consequência com que fomos diretamente confrontados.

Os acontecimentos sucederam-se rapidamente: Paris 2015, Nice 2016 e Berlim 2016 descrevem uma lista completamente incompleta de atentados relacionados com a vaga de refugiados e as ameaças islamistas que nela flutuam. Para meu espanto, a política de migração na Alemanha não sofreu qualquer alteração. Em vez disso, os tabus intensificaram-se e as críticas à Realpolitik foram denegridas como xenófobas. Foi como um sono político do qual os responsáveis parecem ainda não ter acordado.

Como um prenúncio do caos total

Depois de uma breve “interrupção do coronavírus”, a invasão russa da Ucrânia, acompanhada por refugiados de guerra, sobretudo mulheres e crianças ucranianas, e pela primeira vez apercebemo-nos realmente de que a migração ilimitada e descontrolada dos anos anteriores pode ser muito desumana.

Que as opções da Alemanha podem, afinal, ser finitas e que os jovens árabes podem não ser o grupo que mais precisa de ajuda. Este breve período parecia ser o prenúncio do caos total, uma vez que o ataque genocida do Hamas a Israel e a guerra que se seguiu no Médio Oriente levaram a escalada da questão migratória a um primeiro, mas infelizmente não último, clímax neste país.

“De repente”, ao que parece, olhando para as reacções dos políticos, o antissemitismo explodiu na Alemanha numa dimensão que não se conhecia nas décadas anteriores. Foi importado.

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Nancy Faeser: desmotivada e vazia de conteúdo

Estas imagens de migrantes árabes cheios de ódio, que celebram a violência contra os judeus, são difíceis de suportar. E, no entanto, são a realidade. Permitimos que pessoas estrangeiras que nos pedem proteção profanem os nossos valores e nem sequer somos punidos por isso?

Apenas como um aparte, uma vez que é frequentemente esquecido e não é realmente aplicado: A liberdade de reunião, protegida constitucionalmente, é um chamado direito alemão. Por uma boa razão: nenhum conflito de política externa deve ser travado aqui na Alemanha. Mas é exatamente isso que se tornou realidade. Desligo a televisão quando os políticos do governo semáforo (coligação tripartidária) , nomeadamente Nancy Faeser( ministra do Interior), falam de forma desmotivada e vazia. Na cúpula do nosso país, é óbvio que há muito que capitularam.

Depois, pouco antes do Natal, o ano de 2024 termina com o prolífico crime de Magdeburgo. Os políticos dos Verdes e do SPD não se cansam de sublinhar que o autor do crime é obviamente um islamófobo. O que eles estão agora a discutir de uma forma quase patológica: A disputa sobre o Islão político não pertence ao nosso país. A Alemanha não é a principal responsável por um cidadão estrangeiro criminoso e perigoso, com um passado cultural estrangeiro.

Quando é que isto vai finalmente acabar?

Para além deste ato particularmente terrível, não podemos esquecer o burburinho de fundo de todas as notícias, agora infelizmente incontáveis, de esfaqueamentos, homicídios e assassinatos nos noticiários regionais ou nos jornais locais, que já nem sequer chegam à imprensa nacional devido ao seu grande número.

Assim, no início do ano 2025, quando dizemos para nós próprios “não pode piorar”, ligamos as notícias e, numa cidade francófona vizinha daquela onde nasci, um requerente de asilo (!) assassina traiçoeiramente (!) uma criança do jardim de infância (!) que estava a brincar no parque com os seus professores e amigos do jardim de infância. As outras crianças só puderam ser salvas porque um transeunte interveio e pagou com a vida a sua coragem e rapidez de ação.

Poderá piorar ainda mais? Quando é que isto vai finalmente acabar? Não é que não se possa fazer nada para garantir a segurança interna e externa...

O Estado não é um fim em si mesmo

Como se tudo isto não fosse suficientemente terrível, a espiral de escalada é também alimentada pelo facto de o Estado e os políticos não só parecerem impotentes há dez anos, mas aparentemente também quererem ser impotentes!

Os ministérios e os gabinetes não são um mercado de trabalho para políticos de centro-esquerda que pensam que um pouco mais de burocracia nos faria bem a todos. O Estado não é um fim em si mesmo. Aqueles que assumem responsabilidades e ganham a confiança do eleitorado têm de cumprir os seus deveres, tal como qualquer trabalhador tem de fazer no seu local de trabalho.

Isso inclui, antes de mais, a manutenção da ordem pública e a garantia da segurança externa e, sobretudo, interna. No entanto, quem pensa que pode impor a sua própria agenda política pessoal falhou em todos os aspectos e é responsável por conduzir um país (atualmente ainda) muito seguro e economicamente estável a um ponto de não retorno.

“Felizmente não tinhas razão, Franka”

Uma pessoa que parece ter compreendido este facto é Friedrich Merz. Esta manhã (24.01.2025), com uma lucidez desconhecida na política alemã, bateu o martelo sobre as apostas a que já amarrou a sua chancelaria. O seu plano de cinco pontos sobre a política de migração inclui, entre outras coisas, uma proibição imediata de entrada de facto, uma suspensão indefinida da deportação para criminosos e pessoas perigosas que são obrigadas a deixar o país e a aplicação da obrigação de deixar o país através de voos diários de deportação.

A emotividade e a clareza das suas palavras tinham o calibre de um chanceler e eram convincentes. Ficámos com a impressão de que, finalmente, havia de novo um político para quem o bem-estar do país e dos cidadãos alemães era a principal prioridade. O rumo da política de migração dos governos dos últimos anos seria assim corrigido de uma vez por todas, uma vez que Merz deixou claro que esta era uma condição da coligação para ele. A medida em que os problemas actuais podem ainda ser eliminados ou apenas atenuados é, no entanto, incerta.
Mas ainda posso esperar que, quando ligar o Tagesschau daqui a dez anos (se ainda existir), possa lembrar-me deste texto e dizer: “Ainda bem que não tinhas razão, Franka”.

E agora Alemanha?

Helena Ferro de Gouveia, 23.01.25

 

 

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Dentro de exactamente um mês realizam-se as eleições legislativas antecipadas na Alemanha. Este sufrágio definirá o rumo do maior e mais influente Estado-membro da UE e da maior economia da zona euro - ainda que vacilante - para os próximos quatro anos.

O primeiro post deste blogue é um guia sobre o que está em jogo, como funciona o sistema, quem são os principais actores e qual poderá ser o resultado final.

A coligação tripla de social-democratas (SPD), democratas-livres (FDP) e verdes que governa a Alemanha desde 2021 colapsou sob o peso das suas próprias contradições ideológicas e dos desafios económicos e de segurança do país.

O chanceler social-democrata cessante, Olaf Scholz, demitiu o seu ministro das Finanças liberal, Christian Lindner, devido a uma amarga disputa orçamental que durou meses e, em seguida, convocou um voto de confiança no  Bundestag deliberadamente para o perder.

Quem quer que venha a ser chanceler terá de enfrentar uma economia assolada por elevados custos energéticos e laborais, uma burocracia asfixiante, infra-estruturas em ruínas e uma economia que encolheu durante dois anos consecutivos pela primeira vez em décadas.

O abrandamento das relações com a China, um parceiro comercial, afectou as exportações alemãs, um ponto forte tradicional, enquanto a indústria automóvel tem sido lenta a desenvolver veículos eléctricos atraentes e enfrenta agora a ameaça de tarifas aduaneiras dos EUA, sob a presidência de Donald Trump.

Os optimistas afirmam que as legislativas poderão dar à Alemanha uma oportunidade vital de investimento, modernização e renovação. Os pessimistas dizem que os problemas são tão estruturais e as expectativas tão elevadas que a coligação intermédia que provavelmente surgirá está condenada a desiludir.

 

Composição do Bundestag desde 2021 até agora

Quem são os principais actores e o que prometeram?

A União Democrata-Cristã (CDU), liderada por Friedrich Merz propõe-se reduzir os impostos, aumentar a elegibilidade para a segurança social, reduzir a imigração, processar os pedidos de asilo no estrangeiro e aumentar a ajuda à Ucrânia.

A Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita, adoptou o conceito de “re-migração”, ameaçando com a deportação em massa de migrantes. Promete também o regresso ao marco alemão, o recrutamento militar e reformas profundas na educação.

O SPD de Scholz tem como objetivo apoiar as famílias com baixos rendimentos, reduzindo o IVA sobre os produtos alimentares e os impostos para os trabalhadores com baixos rendimentos e aumentando o salário mínimo. Tem também como objetivo reduzir a imigração e propõe um fundo de investimento em infra-estruturas no valor de 100 mil milhões de euros, mas é mais cauteloso em relação à Ucrânia. Scholz recusou o envio de mísseis Taurus de longo alcance para Kiev, defendendo a decisão como uma medida “prudente” de anti-escalada.

Os Verdes anunciaram a criação de um imposto para ajudar as famílias mais pobres na transição ecológica. Também são a favor do aumento do salário mínimo e estão a insistir em incentivos para acelerar a transição para as energias renováveis.

O “travão da dívida” da Alemanha, que limita os novos empréstimos do Estado a 0,35% do PIB por ano, também tem sido fundamental. A flexibilização deste travão, que o SPD e os Verdes defendem, é considerada vital para aumentar as despesas com a defesa e o investimento público, tão necessário.

Foi a recusa do FDP liberal em permitir que o SPD e os Verdes contornassem o mecanismo que precipitou a queda do anterior governo. No entanto, com receio de assustar os eleitores conservadores, Merz pouco disse sobre quaisquer planos para o reformar.

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Como é que o sistema eleitoral funciona?

A Alemanha tem um sistema eleitoral híbrido, no qual os  eleitores sispôem de 2 votos. Um num candidato que representa um círculo eleitoral e um segundo  na lista de candidatos de um determinado partido num Estado federal. Apenas os partidos que obtêm 5% do segundo voto podem entrar no parlamento.

Desde que as eleições de 2021 produziram um Bundestag "inchado" com735 lugares, um dos maiores parlamentos do mundo, a lei eleitoral foi revista no ano passado após uma decisão do tribunal superior do país e entrou em vigor limitando o tamanho do Parlamento a 630 lugares.

O novo sistema tem também como objetivo dar prioridade à representação proporcional, pelo que os lugares serão atribuídos com base nos segundos votos recebidos a nível nacional. Se um partido obtiver proporcionalmente mais lugares nos círculos eleitorais do que a sua quota de votos a nível nacional, alguns ficarão vagos.

O tribunal rejeitou uma proposta de alteração que, segundo o tribunal, teria prejudicado os partidos mais pequenos, pelo que os partidos que obtiverem pelo menos três mandatos nos círculos eleitorais continuarão a ter direito a lugares parlamentares de acordo com a sua votação nacional, mesmo que esta seja inferior a 5%.

A combinação do limiar de 5%, da exceção dos três lugares e de um panorama partidário invulgarmente fragmentado e competitivo, com muitos partidos mais pequenos a lutarem por uma posição, significa que a composição exacta do novo Bundestag é particularmente incerta.

O que dizem as sondagens e qual é o resultado provável?

Parece haver poucas dúvidas de que o conservador Merz será o próximo chanceler da Alemanha. A CDU e o seu partido-irmão bávaro, a União Social-Cristã (CSU), têm estado consistente e confortavelmente à frente nas sondagens desde há meses, com cerca de 31%, com a AfD em segundo lugar, com 20-21%.

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