Auschwitz:da amnésia à memória
Como respeitar o carácter único de um acontecimento inscrevendo-o na história, contextualizando-o, sem o trivializar, sem o instrumentalizar e respeitando o imperativo categórico da memória?
Oitenta anos após Auschwitz, o “Lager” que se tornou no símbolo do genocídio “industrial” dos judeus, a Alemanha fez um longo, intenso, doloroso e exemplar percurso de confronto com passado. Este exercício foi-se intensificando à medida que os 12 anos do III Reich se foram distanciando e acentuou-se com a reunificação do país. O primeiro confronto dos alemães com o passado recente foi involuntário: enquadrava-se no programa de “Umerziehung” (reeducação) dos Aliados, através de “visitas” aos campos de concentração, da exibição cinematográfica dos crematórios e das pilhas de cadáveres, da desnazificação e do Julgamento de Nuremberga.
Em “Política e Culpa”, a politóloga Gesine Schwan explica o preço político e psicológico daquilo que designa por “Beschweigen” – manter deliberadamente o silêncio sobre os crimes e a barbárie nazi – na escola, na vida pública e sobretudo nas famílias durante os anos 50. Discutivelmente, o filósofo Hermann Lübbe argumenta que terá sido o facto da Alemanha de Konrad Adenauer, durante os anos 1950, ter suprimido a memória do nacional-socialismo, conjugando amnistia e amnésia, que permitiu a consolidação social da democracia na República Federal da Alemanha. Em resumo: a culpa da Shoah devese a alguns, poucos, “Täter”, um mito de inocência individual na Alemanha Ocidental e colectiva na RDA.
Os próprios intelectuais ficaram perplexos perante a lâmina acutilante da poesia de Paul Celan, “a morte é um mestre que veio da Alemanha” (“Fuga da Morte” 1952). À amnésia segue-se a entrada em força na Academia e nas páginas dos jornais de dois termos: “Geschichtssaufarbeitung” (tratar o passado) e “Vergangenheitsbewältigung” (ultrapassar o passado).
Com a publicação do “ Diário de Anne Frank” e a primeira análise documental do Genocídio como processo industrial – “Noite e Nevoeiro” de Alain Resnais, 1955 – os alemães começaram a descobrir a empatia com as vítimas. A década de 60 abre com dois julgamentos o de Adolf Eichmann, “o” organizador do Holocausto, em Alemanha
A partir do “processo de Auschwitz”, nos anos 1960, e com a geração de 1968 foram obrigados a um doloroso e intenso trabalho de confronto com o passado 1961, em Israel, e o “processo de Auschwitz”, em Frankfurt. Foi com este último processo, entre Dezembro 1963 e Agosto de 1965, onde depuseram 211 sobreviventes, que a opinião pública alemã sofreu um violento choque.
Auschwitz, realidade incompreensível, materializou-se nas consciências, tornando-se no sinónimo do mal absoluto. Fritz Bauer, o procurador público que esteve na origem do processo, afirmava que ele deu à Alemanha uma oportunidade de usar o sistema legal como forma de auto-reflexão e de aprendizagem sobre “os perigos da nossa história”. Com a geração de 68, a culpa salta para as ruas, desafiando o clima público de amnésia colectiva. Os debates sobre as origens do Genocídio foram tornando-se mais sofisticados à medida que paradigmas mais amplos de interpretação se aplicaram para explicar a marcha do anti-semitismo hitleriano até ao mecanismo organizado de morte em massa.
Nos anos 1980, a competição de memórias talvez seja a característica que melhor descreve o confronto dos alemães com o passado. “Muitos alemães ainda não estabeleciam conexões entre o seu sofrimento pessoal e aquilo que Hitler perpetrou”, escreve a historiadora Mary Fulbrook. A série televisiva “Holocausto” e o filme “Shoah”, de Claude Lanzmann, foram bússolas no longo percurso da Alemanha para se tornar uma nação “normal”.
Só em 2002 se reuniram condições para realizar uma exposição de grande fôlego sobre a “indústria de aniquilamento” nazi em que o “Leitmotiv” era o destino das vítimas e não a acção dos perpetradores. A mostra “Holocausto, o genocídio nacional-socialista e os motivos da sua memória” evitou recorrer ao efeito de choque e comoção – o murro no estômago experimentado por quem visita um campo de concentração ou o Museu do Holocausto em Washington – apostando numa organização “clean”, cronológica e tão racional quanto o tema o permite. “O enquadramento do Holocausto no seu contexto histórico-político é muito importante, em particular na Alemanha, onde uma identificação moral com as vítimas exige a ultrapassagem de enormes barreiras psicológicas”, explica o historiador Hans Mommsen.
Em 1999, o Bundestag aprovou o monumento em memória dos judeus europeus exterminados. Em pleno coração de Berlim, a obra do arquitecto Peter Eiseman, que seria inaugurada a 10 de Maio, possibilita aos visitantes moverem-se aleatoriamente, perdendo todas as certezas.
Hoje, o trabalho de memória não é feito com um dedo acusador, mas sob a vigilância perene do artigo primeiro da Lei Fundamental alemã: “A dignidade humana é intocável”.
(texto adaptado do que escrevi para o Público a 27.01.2005 )